
A diabólica PEC 66/2023 que dá novo calote a precatórios judiciais
Artigo – Kiyoshi Harada
A PEC 66/2023 é obra de Satanás elaborada por mentes doentias.
1 Introdução
O Município de São Paulo até o governo Setubal nunca havia atrasado o pagamento de precatórios de sua responsabilidade.
Fazia-se o pagamento no prazo máximo de três meses, a contar do prazo de seu vencimento.
Só não se fazia antes desses três meses,porque o setor de contabilidade da Prefeitura não conseguia calcular os valores devidos incluindo os juros e acorreção monetária.
Lembre-se que na época tudo era feito manualmente, pois não eram conhecidos os recursos da informática. Aliás, a Internet nem existia na época!
O atraso começou no governo Covas, prefeito nomeado pelo governador do estado de São Paulo, Franco Montoro.
O governo Montoro havia brecado o pagamento de precatório de valor astronômico gerado pela desapropriação da Cia. Paulista de Estrada de Ferro. Não era possível acumular em um mês um valor tão expressivo.
A Procuradoria Geral do Estado não conseguiu dar uma solução viável para destravar a fila de precatórios. Na Prefeitura, quando deparamos com precatório de elevado valor a atravancar a fila de precatórios, procuramos o credor desse precatório e fizemos um acordo para pagamento parcelado que foi homologado pelo juiz permitindo o pagamentos de precatórios subseqüentes, enquanto estiver em dia com o pagamento das parcelas acordadas.
A PGE não teve essa mesma ideia. Orientou o governo para desistir da desapropriação. A desistência foi indeferida em todas as instâncias, inclusive, no STF, pela simples razão de que não era mais possível retomar o bem expropriado a status quo ante, porque não mais existiam as açõesdesapropriadas da Cia Paulista de Estrada de Ferro que havia sido sucedida por uma empresa estatal, a FEPASA.
Diante desse impasse o governador Montoro ordenou ao Prefeito por ele nomeado que paralisasse o pagamento de precatórios municipais, a fim de não gerar o contraste, politicamente desfavorável ao governador.
Desde então, o Município de São Paulo nunca mais conseguiu pagar em dia o precatório, gerando inúmeros pedidos de intervenção do estado, medida que nunca prosperou, até que veio o primeiro calote constitucional pelo art. 33 do ADCT da Constituição de 1988, pelo qual os precatórios poderiam ser pagos em 8 parcelas anuais, iguais e sucessivas.
Em razão da inflação galopante as dívidas de precatórios cresciam como bolas de neve,formando uma “dívida impagável” no dizer dos prefeitos das csapitais. Em virtude disso sucessivos calotes constitucionais foram instituídos: art. 78 do ADCT introduzido pela EC nº 30/2000; art. 97 do ADCT introduzido pela EC nº 62/2009; EC nº 94/2016 que prorrogou a moratória até o dia 31-12-2020; EC nº 99/2017 que prorrogou a moratória até 31-12-2024; EC nº 109/2021 que enxertou o art. 101 ao ADCT para postergar a moratória até o dia 31-12-2029.
A União que até então nunca havia atrasado o pagamento de precatório deu o seu primeiro calote por meio da EC nº 114/2021 instituindo uma singular moratória consistente na limitação, até o exercício de 2026, ao valor de precatórios pagos em 2016. Deu-se uma retroação de seis anos para aumentar o valor do calote. E ao mesmo tempo antecipou o período requisitorial de 1º de julho de cada ano para o dia 2 de abril de cada exercício,aumentando o prazo de pagamento que era de 18 meses para 21 meses.
O exame da PEC diabólica
A PEC nº 66/2023, patrocinada pelo governo Lula na base da liberação de bilhões de reais em emendas parlamentares, acrescentou os §§ 23 a 26 ao art. 100 da CF nos seguintes termos:
§ 23. Os pagamentos de precatórios devidos pelas Fazendas Municipais estão limitados a 1% (um por cento) da Receita Corrente Líquida apurada no exercício financeiro anterior.
§ 24. Não são considerados no limite de que trata o § 23 os pagamentos de precatórios realizados nos termos dos §§ 11 e 21.
§ 25. Em 2030, verificando-se mora no pagamento de precatórios em virtude do limite de que trata o § 23, deverá ser quitado mediante parcelamento especial, dnos termos de lei municipal, com prazo máximo de 240 meses.
§ 26. A cada cinco anos, verificando-se nova mora no pagamento de precatórios, deverá ser promovido novo parcelamento especial nos termos do § 25.” (NR)
De conformidade com o § 23, o limite de 1% da RCL para pagamento de precatórios deixa de ser mensal. Esse limite passa a ser aplicado sobre a RCL do exercício financeiro anterior. Porém, não se fixou o prazo de depósito, nem a periodicidade dos depósitos de valores destinados ao pagamento de precatórios. Em janeiro, em julho, em dezembro? Não sabemos, nem se descobre! É do conhecimento geral que os tesouros municipais estão sempre esgotados nos dois últimos meses do ano para fazer face ao pagamento de 13º salário dos servidores e celetistas.
O astuto legislador constituinte derivado plantou a semente da erva daninha que irá torpedear os precatórios. Por lógica consequente, o montante resultante da aplicação da alíquota de 1% da RCL do exercício anterior deveria ser desdobrado em duodécimos, para fins de depósitos mensais, a fim de possibilitar a administração dos recursos depositados e programar o pagamento dos precatórios pelo Tribunal de Justiça.
Essa diabólica PEC nº 66/2023 abre caminho para novos desvios de recursos destinados a precatórios. É o calote do calote!
Ademais, nos termos dos §§ 11 e 21, do art. 100 da CF,os valores de precatórios utilizados: na quitação de débitos inscritos na dívida pública; na compra de imóveis públicos de propriedade do ente político devedor; e na aquisição, inclusive minoritária, de participação societária, disponibilizada para a venda, do respectivo ente federativo devedor) não são considerados no limite de 1% da RCL (§ 24).Mas, isso e apenas no âmbito municipal.
Na esfera federal (§ 21, do art. 100 da CF) a União poderá utilizar os valores de precatórios para amortização de dívidas, vencidas e vincendas:
Nos contratos de refinanciamento;
Nos contratos e que houve prestação de garantia a outro ente federativo;
Nos parcelamentos de tributos; e
Nas obrigações decorrentes do descumprimento de prestação de contas ou de desvio de recursos.
Contudo, o açodado e descuidado legislador da Câmara Alta, em ambos os casos,nos §§ 11 e 21 dispensou o mesmo tratamento jurídico de não inclusão no limite de 1% da RCL para pagamentos de precatórios pelas Fazendas municipais, conforme se depreende do §23 a que se refere o § 24.
Só que na moratória decretada pela União não há limite da RCL, porque ela adotou um calote sui generis como já dissemos anteriormente.
A contar do exercício de 2030, os valores de precatórios não liquidados em virtude da limitação do § 23, deverão ser pagos mediante parcelamento especial em 240 meses, de conformidade com a lei municipal (§ 25).Em outras palavras, para calotear não precisará mais de Emenda Constitucional.
Por derradeiro, a cada cinco anos, verificada a nova mora no pagamento de precatórios, deverá ser promovido novo parcelamento nos termos do § 25 (§ 26). Está aberto o caminho para a eternização do calote. Não mais haverá prazo para o pagamento de precatórios seguindo o provérbio: eu devo, mas pago quando quiser!
O legislador astuto e aético é muito rico no exercício da futurologia em se tratando de prejuízo a ser imposto aos indefesos precatoristas, que não têm voz e que, por isso, vão morrendo silenciosamente na interminável fila dos precatórios, um cancro que corrói o Estado Democrático de Direito.
A maldade e a crueldade desses legisladores diabólicos não têm fim. É como a burrice que não tem limites, ao contrário da inteligência que é sempre limitada. É o império da burrice e ao mesmo tempo o império da maldade e da crueldade!
Em consequência, o crédito de precatório vai passando de pai para o filho, para o neto e para o bisneto. O precatorista original, que batalhou e levou lustros para obter a expedição do precatório judicial a seu favor, não consegue usufruir em vida o resultado material da demanda vitoriosa, por conta da insensibilidade e imoralidade dos ditos representantes do povo que falam muito em inclusão social para enganar os eleitores, mas que, na realidade, se preocupam tão somente com seus interesses pessoais escusos e ilegítimos, formando alianças espúrias e demoníacas com governantes despidos de pudor, absolutamente desqualificados para o exercício da função pública.
Do exposto, nota-se que uma Emenda é mais venenosa e perigosa do que a outra. Começou com uma inocente cobra; evoluiu para uma jararaca/cascavel e agora temos a mortífera coral, que mata em poucos minutos sem dar tempo para vacinar.
A PEC nº 66/2023 que analisamos resumidamente é, sem dúvida alguma, obra de Satanás!
A Justiça tem dado guarida a todas essas Emendas que violentam direitos protegidos por cláusulas pétreas, com a maior naturalidade. É a rara união dos três Poderes para prejudicar os credores por precatórios judiciais. É uma grande ironia: o Judiciário ajuda a calotear os valores que ele próprio requisita!
Em face do comportamento anômolo de nossos órgãos jurisdicionais é o caso de a OAB acionar o Tribunal Internacional, pois a Justiça Brasileira seguramente não está vocacionada para solucionar o drama das vítimas de precatórios que aos poucos vão morrendo à espera do seu crédito que nunca chega.
Finalizando, penso que escritórios internacionais, igualmente, poderiam pleitear perante a justiça estrangeira, a exemplo da ação coletiva ajuizada na Justiça Britânica no caso das indenizações devidas às vítimas de Mariana. Pergunta-se, o que impede de o mesmo escritório internacional d epleitear a quitação de precatórios pela forma estabelecida nas regras permanentes do art. 100 e parágrafos da Constituição de 1988? Afinal já se passou quase meio século que o Estado vem protelando o pagamento das condenações judiciais, muito mais do que em relação às indenizações devidas às vítimas de Mariana.
Desde o advento da Constituição Cidadã em 5 de outubro de 1988, o art. 100 e parágrafos que cuidam do pagamento de precatórios nunca foram aplicados até hoje por força de sucessivas e intermináveis suspensões indecorosas.
Se tivesse vontade política, a União poderia encampar e quitar de vez todos os débitos por condenação judicial de responsabilidade dos estados e municípios, pois o seu montante é bem menor do que o montante que a União vem pagando a título de juros por conta das dívidas trilhonárias. Ao invés disso a União embarcou astutamente na canoa do caloteiros, inaugurando a partir de 2023 uma singular moratória urdida por mentes insanas.
SP, 12-8-2025
- Sobre o Autor Kiyoshi Harada
- Com mais de 50 anos de experiência, dr. Kiyoshi Harada é um dos nomes mais conceituados em Direito Tributário e Direito Financeiro na América Latina. É autor de inúmeras obras jurídicas e professor de Direito Administrativo, Tributário e Financeiro em diversas instituições de ensino superior. Especialista em Direito Tributário e Ciência das Finanças, é Membro da Academia Paulista de Letras Jurídicas e ex-Procurador-Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo.
- Bacharel em Direito pela FADUSP, em 1967
- Especialista em Direito Tributário pela FADUSP, em 1968
- Especialista em Ciência das Finanças, pela FADUSP, em 1969
- Mestre em Direito pela UNIP em 2000
- Professor de Direito Administrativo, Tributário e Financeiro em diversas instituições de ensino superior
- Autor de 43 obras jurídicas e de mais de 750 artigos e monografias; co-autor em 58 obras coletivas jurídicas e não-jurídicas
- Ex Procurador-Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo
- Membro da Academia Paulista de Letras Jurídicas
- Presidente do Instituto Brasileiro de Estudos de Direito Administrativo, Financeiro e Tributário (Ibedaft)
- Recebeu a Ordem do Sol Nascente com Raios de Ouro com Laço em 2020, condecoração do governo japonês; e em 2023 um prêmio internacional pela carreira da Rede Internacional de Excelência Jurídica Barnes & Noble.
- Uma de suas obras atuais é Direito Financeiro e Tributário, 34ª edição (abril de 2025), que aborda legislação recente como a LC 135/2024, 210/2024 e 214/2025, entre outras, com análise prática e objetiva para operadores do direito