
Câmara aprova urgência para projeto de anistia que beneficia Bolsonaro e condenados no STF
Da Redação da São Paulo Tv Especial Brasília
A aprovação, pela Câmara dos Deputados, da urgência para tramitação do projeto de lei que concede anistia aos envolvidos nos atos de 8 de janeiro de 2023, marca um ponto de inflexão na relação entre o Legislativo e o Judiciário brasileiro. Com 311 votos favoráveis, 163 contrários e sete abstenções, a medida, de autoria de Marcelo Crivella (Republicanos-RJ), ganhou fôlego sob o argumento de pacificação nacional, mas escancara uma disparidade profunda entre a jurisprudência consolidada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) e a intenção política da maioria parlamentar.
O confronto entre Legislativo e Judiciário
O STF, em decisões reiteradas, classificou os atos de 8 de janeiro como atentado contra o Estado Democrático de Direito, imputando aos réus crimes graves como golpe de Estado, abolição violenta do Estado de Direito, dano ao patrimônio público e associação criminosa. As penas aplicadas variam de 3 a 17 anos de prisão, com centenas de condenações já firmadas em julgamento colegiado.
O projeto em debate, no entanto, cria uma anistia ampla, geral e irrestrita, capaz de neutralizar centenas de condenações e esvaziar o trabalho de investigação e julgamento do Supremo. Trata-se, em termos objetivos, de um perdão retroativo que não apenas revoga a punição de crimes já julgados, mas abre precedente para reinterpretar a gravidade de ataques à ordem constitucional.
Quem votou a favor
O apoio massivo de partidos do Centrão foi decisivo para a aprovação: PL: 85 votos favoráveis (apenas três não votaram). União Brasil: 49 votos sim. PP: 43 votos sim. Republicanos: maioria absoluta pela aprovação. PSD: dividido — 28 votos sim, 12 não. MDB: mesmo com orientação contrária, entregou 21 votos sim.
PSDB, Novo e Cidadania: parte significativa também apoiou o texto.
Esse bloco garantiu que a pauta avançasse de forma acelerada, mesmo com críticas da oposição e de parte das bancadas mais tradicionais.
Quem votou contra
A rejeição ao projeto concentrou-se em partidos de esquerda e no campo governista: PT: fechou questão contra a anistia, com votos unânimes contrários. PSOL: integralmente contra. Rede, PCdoB e PV: acompanharam a orientação contrária. PDT: também se posicionou majoritariamente contra. Setores do MDB e do PSD: mesmo dentro da base centrista, 14 emedebistas e 12 social-democratas votaram contra.
Essas siglas sustentaram que a aprovação da urgência significa “abrir a porteira” para anular decisões do Supremo Tribunal Federal, fragilizando a separação dos Poderes.
Quantos crimes seriam atingidos?
Segundo dados processuais divulgados pelo STF e pela Procuradoria-Geral da República, mais de 1.400 pessoas foram denunciadas por envolvimento nos ataques. Aproximadamente 800 já receberam sentença condenatória, enquanto outras ainda aguardam julgamento. A anistia proposta, portanto, tem potencial de abranger milhares de crimes correlatos — desde depredação do patrimônio tombado até conspiração para golpe de Estado.
Esse contraste revela um abismo: de um lado, o Supremo definiu os atos como atentado ao coração da democracia; de outro, o Congresso cogita esvaziar todas essas sentenças sob o manto da reconciliação nacional.
Analogia com futuros crimes
O impacto não se restringe ao caso do 8 de janeiro. Ao transformar crimes políticos graves em objeto de perdão legislativo, o Parlamento cria um precedente perigoso: qualquer futura tentativa de ruptura institucional, invasão de prédios públicos ou ataque à ordem democrática poderia, a depender da composição política do momento, ser igualmente anistiada.
Na prática, a mensagem enviada é de que crimes contra o Estado podem ser relativizados por cálculos eleitorais. Se levada ao limite, essa lógica abre brechas para que delitos como corrupção sistêmica, violência política organizada ou até crimes ambientais de larga escala sejam enquadrados futuramente em projetos de anistia, sob o pretexto de “pacificação”.
O dilema democrático
O presidente da Câmara, Hugo Motta, sustenta que o Brasil “precisa andar” e que a anistia seria instrumento de pacificação. Já opositores, como o deputado Pastor Henrique Vieira (PSOL-RJ), apontam que se trata de um “esculacho” institucional. O centro do debate, porém, vai além da polarização: está em jogo o próprio equilíbrio entre poderes.
Se a Câmara aprovar a anistia em caráter amplo, estará legislando contra decisões definitivas do Supremo, criando um conflito institucional que relativiza o princípio da separação dos Poderes e enfraquece a autoridade do Judiciário.
Conclusão
O debate sobre anistia não é novo na história brasileira. O país já recorreu a esse instrumento em contextos de ditadura e transição democrática. Mas a diferença crucial está no objeto: anistiar opositores perseguidos por regimes autoritários é um gesto de reconciliação; anistiar crimes cometidos contra a democracia em pleno regime constitucional é um gesto de desestabilização.
A disparidade entre o que o STF já julgou e o que o Congresso pretende votar expõe não apenas um embate de narrativas, mas um risco real de erosão institucional. A depender da decisão final, o Brasil pode estar criando um precedente em que delitos contra o Estado deixam de ser punidos — e a democracia passa a depender, mais do que nunca, do humor político das maiorias parlamentares.