
A paulatina desmontagem do orçamento público*
Artigo – Kiyoshi Harada
O orçamento público que é um instrumento de exercício da
cidadania transformou-se em uma mera peça de ficção jurídica
A proposta de Lei Orçamentária Anual – LOA –, em tese, espelha o plano de ação governamental elaborado de acordo com as promessas de campanha do governante eleito, à medida que o orçamento público direciona a execução de despesas a serem feitas com os recursos arrecadados.
O povo que autoriza a arrecadação (princípio da legalidade tributária) é o mesmo que autoriza as despesas públicas (princípio da legalidade das despesas públicas).
Efetivamente, quando se aprova a LOA aprovam-se em bloco as dotações orçamentárias que fixam as despesas no exato montante das receitas previstas. O poder de arrecadar e o poder de gastar emanam do povo, por meio de seus representantes legitimamente eleitos (Parágrafo único do art. 1º da Constituição).
Porém, na prática isso não vem acontecendo quer por falta de representatividade dos parlamentares eleitos, quer porque o orçamento público emendado e remendado durante as tramitação do respectivo projeto quer, enfim, por sucessivos mecanismos de desmontagem do orçamento público, como veremos.
O primeiro golpe contra o orçamento público foi a derrogação do art. 68 da Constituição de 1967, in verbis:
“Art. 68. O projeto de lei orçamentária anual será enviado pelo Presidente da República à Câmara dos Deputados até cinco meses antes do início do exercício financeiro seguinte; se, dentro do prazo de quatro meses, a contar de seu recebimento, o Poder Legislativo não o devolver para sanção, será promulgado como lei”.
Esse dispositivo salutar não foi reproduzido na Constituição de 1988 que na versão em vigor sequer contém dispositivo relativo ao envio da proposta orçamentária pelo Presidente da República, muito menos o prazo de retorno da Casa Legislativa para sanção presidencial.
Essa matéria é regulada por lei complementar conforme dispõe o § 9º do art. 165 da Constituição Federal até hoje não regulamentado, apesar de decorridos longos 37 anos, o que revela a falta de vontade política dos parlamentares quando se trata de disciplinar o orçamento público.
Como a proposta orçamentária é de competência privativa do Presidente da República (art. 84, XXIII da CF), os parlamentares forçam sistematicamente o Chefe do Executivo a enviar ao Parlamento mensagens aditivas (art. 166, § 5º da CF) encampando o remanejamento das dotações orçamentárias, para suprir as restrições impostas ao Legislativo pelo § 3º do art. 166 da CF.
Enquanto as mensagens aditivas não chegam como desejam os parlamentares, a proposta orçamentária não tem seguimento. Esse § 5º do art. 166 da CF transformou-se em uma fonte permanente de atraso na devolução do orçamento anual aprovado para sanção presidencial. Há exemplo de LOA sancionada apenas no final de agosto do exercício em curso.
Por conta desse atraso sistemático força-se o Executivo violar o princípio da legalidade das despesas públicas, promovendo aplicação de despesas fixadas na proposta orçamentária sem respaldo legal, porque as necessidades de sociedade não podem ficar na dependência da boa vontade do Congresso Nacional em aprovar a LOA.
Houve um retrocesso constitucional nessa matéria.
O § 5º do art. 50 da Constituição de 1934 prescrevia a prorrogação do orçamento em curso na omissão do Parlamento Nacional
O art. 72 da Constituição de 1937, por sua vez, dispunha que o Presidente da República publicará o orçamento no caso de omissão do Congresso Nacional.
Por fim, como vimos, o art. 68 da Constituição de 1967 previa a promulgação do orçamento na hipótese de omissão do Congresso Nacional.
Mesmo na omissão da Constituição vigente a respeito da matéria sustentamos a tese da promulgação do orçamento pelo Chefe do Executivo, conforme escrevemos e3m nossa obra:
“Não há previsão na Constituição atual, mas a tese da promulgação da proposta orçamentária como lei encontra amparo no § 2º do art. 35 do ADCT se examinado com cuidado:
§ 2º Até a entrada em vigor da lei complementar a que se refere o art. 165, § 9º, I e II, serão obedecidas as seguintes normas:
I – o projeto do plano plurianual, para vigência até o final do primeiro exercício financeiro do mandato presidencial subseqüente, será encaminhado até quatro meses antes do encerramento do primeiro exercício financeiro e devolvido para sanção até o encerramento da sessão legislativa;
II – o projeto de lei de diretrizes orçamentárias será encaminhado até oito meses e meio antes do encerramento do exercício financeiro e devolvido para sanção até o encerramento do primeiro período da sessão legislativa;
III – o projeto de lei orçamentárias da União será encaminhado até quatro meses antes do encerramento do exercício financeiro e da sessão legislativa e devolvido para sanção até o encerramento da sessão legislativa.
Nota-se o tom de comando contido nos três incisos: o projeto de lei será encaminhado até… e devolvido para sanção até o encerramento da sessão legislativa” .
A tese da promulgação encontra simetria com o disposto no art. 32 da Lei nº 4.320/1964 o qual determina que na hipótese de omissão do Executivo, o Poder Legislativo considerará como proposta a Lei do orçamento vigente.
Outro grande golpe contra o orçamento veio com a instituição do Fundo Social de Emergência instituído pela Emenda Revisional nº 1/1994 vinculando 20% do produto de arrecadação para vigorar nos exercícios de 1994 e 1995 como decorrência do impeachment do Presidente Collor que deixou o país sem orçamento anual. Mesmo com a normalização institucional do país esse FSE foi prorrogado. Depois, verificando que não mais caberia invocar a emergência social, o governante que tinha tomado gosto por gastos discricionários prorrogou esse mesmo Fundo com o nome de Fundo de Estabilização Fiscal – FEF – que, por sua vez, sofreu reiteradas prorrogações até que o governo se apercebendo que o país já estava estabilizado financeiramente prorrogou-o como um Fundo sem nome, apenas conhecido pela sigla DRU –, Desvinculação de Receita da União – desvinculando 30% de suas receitas. Uma vez que sentiu o sabor de gastar discricionariamente, difícil o retorno às despesas segundo a lei. Esclareça-se que a DRU não contém elementos de despesas, o que torna impossível a implementação do mecanismo de controle e fiscalização dos gastos públicos.
Por isso a DRU vem sendo prorrogada a cada quatro anos. A última prorrogação irá até o ano de 2.032, conforme EC nº 123/2023. A DRU nunca irá se findar. O art. 76A do ADCT estendeu a DRU para os estados e municípios. Essa extensão coincidiu com a quebradeira dos estados de Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Goiás e de Minas Gerais, até hoje na UTI financeira da União (RRF).
Mas, o pior golpe veio com as emendas parlamentares em que os parlamentares se tornaram sócios na gestão de recurso públicos, contrariando a regra fundamental de que execução de despesas não comporta regime de condomínio, devendo ser de privativa competência do Chefe do Executivo que governa o país, dando execução às leis aprovadas pelo Poder Legislativo.
A pretexto de que a dotações orçamentárias nunca eram executadas por inteiro, o Congresso Nacional iniciou a discussão da PEC 565/2006 que previa o orçamento impositivo, mas ao final restou aprovado o orçamento semi-impositivo, ou seja, apenas verbas de interesse dos parlamentares são impositivas.
Assim surgiu a EC nº 86/2025 instituindo a Emenda Individual composta de 1,2% da RCL; seguiu-se a Emenda de Bancada com o advento da EC nº 100/2019 vinculando 1% da RCL. Essas duas emendas são de execução obrigatória.
Por fim, foi ativada em 2019 a Emenda do Relator, conhecida pela sigla RP9, prevista na Resolução nº 1/2006 do CN. Por falta de transparência e publicidade essa Emenda do Relator foi declarada inconstitucional pelo STF. A reação legislativa veio dois dias depois. Os deputados incorporaram o saldo de R$19,4 bilhões, reservados a título de Emenda do Relator, à Emenda Individual que passou de 1,2% para 2% da RCL, sendo irmanamente dividido entre as duas Casas Legislativas, cabendo à Câmara dos Deputados 1,55% e ao Senado Federal 0,45%, tudo de conformidade com a EC nº 126/2022 aprovada por um passe de mágica em 24 horas, quase mais rápida do que a aprovação da confusa e dispendiosa reforma tributária pela EC nº 132/2023.
Some-se a tudo isso o tradicional contingenciamento de verbas públicas e o costumeiro esvaziamento das dotações orçamentárias para abertura de créditos extraordinários nas hipóteses que não há despesas imprevisíveis e urgentes de que cuida o § 3º do art. 167 da CF (guerra externa, comoção interna e calamidade pública).
No dia 24-6-2025 o governo e o INSS obtiveram autorização do STF, nos autos da ADPF nº 1236, para abrir crédito extraordinário, a fim de efetuar o reembolso de R$6,3 bilhões aos aposentados e pensionistas que sofreram descontos ilegais, mediante fraudes perpetradas pelas associações de classes e pelos sindicatos.
As fraudes já eram conhecidas desde os idos de 2019. Nada têm de despesas imprevisíveis que não se confundem com despesas imprevistas, nem a urgência para abertura de crédito extraordinário por medida provisória, com as hipóteses constitucionais de abertura de créditos extraordinários por via de medida provisória.
Com tantos mecanismos de sabotagem do orçamento público não há como o orçamento equilibrar as contas públicas. Por isso, o princípio do equilíbrio orçamentário foi banido do ordenamento jurídico-constitucional, desde a Emenda Constitucional nº 1/1969.
Com o orçamento público totalmente desmoralizado não há como aplicar o preceito constitucional do inciso VI do art. 85 da Constituição que capitula como crime de responsabilidade o atentado à lei orçamentária, bem como o seu equivalente, o art. 4º, inciso VI, c.c. com as hipóteses do art. 10 da Lei nº 10.079/1950, conhecida como lei do impeachment.
Esse inciso constitucional e o artigo correspondente da Lei nº 10.079/1950 só são sacados do bolso do colete para decretar o impeachment de governante que conduzir o país a um estado de ingovernabilidade, como aconteceu com a ex Presidente Dilma Rousseff. Do contrário, teríamos um impeachment a cada dia.
Concluindo, o orçamento público que era para ser um instrumento de exercício da cidadania tornou-se um instrumento que cria um caos na gestão de dinheiro público, na contramão da Lei de Responsabilidade Fiscal que tutela a gestão pública responsável de recursos públicos.
Não é por acaso que a sabedoria popular cunhou a expressão: “O brasileiro trabalha para pagar a folha e os juros da dívida pública”. Eu acrescentaria: nós somos objetos de direito com carimbo de CPF nas costas, para identificação do produtor de riquezas. Por falar nisso, doravante as pessoas são identificadas apenas pelo número de seu CPF substituindo a tradicional carteira de identidade. Sem o CPF você não existe.
Quanto mais se produz e aumenta a arrecadação, as despesas mais crescem. A velocidade dos gastos públicos acaba atropelando os aumentos tributários a cada 37 dias.
A única forma de conter os gastos é cortando a arrecadação, coisa difícil de acontecer porque o Congresso Nacional legisla de olho nas emendas parlamentares.
SP, 30-6-2025.
- Texto publicado no Migalhas, edição nº 6.131, de 1º-7-2025.