
Pedofilia virtual: algoritmos, redes criminosas e a indignação pública após a denúncia de Felca
Reportagem Especial Domingo – São Paulo TV foto Reprodução/Globo.
A entrevista do youtuber Felca no programa Altas Horas, de Serginho Groisman, no sábado (16), transformou indignação em tema nacional. Foi a primeira vez que a denúncia da chamada “adultização” de crianças nas redes sociais chegou à TV aberta. Felca, alvo de ameaças após expor como plataformas digitais podem servir de vitrine para pedófilos, foi categórico:
“Algumas ameaças, sim, alguns movimentos para me descredibilizar. Existem pedófilos que se sentiram atacados. Mas, sinceramente, quem tem que ter medo são eles.”
O impacto foi imediato: aplausos no estúdio, milhões de menções nas redes sociais e pressão sobre empresas e autoridades. A entrevista deu rosto e voz ao que números e relatórios já vinham denunciando: a exploração sexual infantil na internet é global, crescente e se apoia nos algoritmos de grandes plataformas.
“O mais difícil foi reunir essas informações, porque parte da demora — e demorei um ano para postar o vídeo — foi porque é um tema tão aversivo, que se você não tem sangue de barata, você não consegue”, revelou Felca.
O ciclo dos algoritmos
Investigações do Estadão, do Wall Street Journal e do Stanford Internet Observatory revelaram um mecanismo perverso. Bastam dez minutos de interação com conteúdos aparentemente inofensivos de crianças para que o algoritmo passe a recomendar vídeos semelhantes, alguns já cercados por comentários e códigos de pedófilos.
Em um levantamento, foram identificadas 405 contas no Instagram ativamente envolvidas na promoção e troca de material sexual infantil. Apesar de a Meta afirmar ter eliminado 27 redes de pedofilia em dois anos, e o TikTok declarar contar com 40 mil moderadores humanos, o conteúdo continua a circular.
“Eu observei que [havia] esse movimento na internet, de crianças produzindo conteúdo, e o público era dividido. Tinha outras crianças consumindo, alguns pais, mas tinha naquele público, também, pedófilos”, explicou.
“Um conteúdo que, se eu mostrasse para você sem dar o contexto, você ia falar que é inocente. Uma criança brincando, se divertindo com as amigas… Mas existiam pedófilos ‘cantando’ aquelas crianças. Você vai vendo aquilo, aquele movimento acontecendo, pessoas que produzem conteúdos com crianças, que às vezes adultizam propositalmente a criança… Se você não sente uma indignação, você não é um ser humano. E eu senti uma indignação. Tinha um público, e falei”, disse.

Brasil: epicentro da crise
O Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2025 confirma a dimensão do problema:
- 61% das vítimas de estupro no Brasil em 2024 eram crianças e adolescentes, num total de 87.545 casos registrados.
- Entre 2022 e 2023, foram 111 mil denúncias de pedofilia virtual.
- O Brasil ocupa hoje o 4º lugar mundial em consumo de material pedófilo online.
Segundo a SaferNet, só em 2024 foram 90 mil denúncias de exploração sexual infantil online, um aumento de 27% em relação ao ano anterior. A cada dia, cinco crianças brasileiras são vítimas de pedofilia virtual.
Dados internacionais: a escalada mundial
- Estados Unidos (NCMEC/CyberTipline 2024)
- 20,5 milhões de denúncias recebidas.
- 62,9 milhões de arquivos (33,1 milhões de vídeos e 28 milhões de imagens).
- 546 mil casos de aliciamento, aumento de 192% em relação a 2023.
- 26,8 mil registros de tráfico sexual de crianças (+55%).
- 1.325% de alta em conteúdos produzidos por inteligência artificial (deepfakes de crianças).
- Quase 100 sextorsões por dia; desde 2021, mais de 30 suicídios de meninos associados a esse crime.
- Europa (Europol/IOCTA 2024)
- Crescimento de extorsão sexual de menores, em muitos casos com material autogerado pela vítima sob coação.
- Projeção de aumento do uso de IA e expansão da criptografia ponta a ponta (E2EE) por criminosos, dificultando investigações.
- Reino Unido (Internet Watch Foundation 2024)
- 424.047 relatos suspeitos;
- 291.273 confirmados com imagens ou vídeos de abuso infantil;
- 729.696 arquivos classificados como ilegais.
- Canadá (Project Arachnid – março de 2025)
- Sistema já processou 173 bilhões de imagens.
- Emissão de 18,5 milhões de ordens de remoção enviadas a 1.000 provedores em 100 países.
- Austrália (ACCCE/eSafety 2023–2024)
- 58.503 denúncias de abuso infantil online, aumento de 45% sobre o ano anterior.
- Alerta para uso de IA em deepfakes e aplicativos de “nudificação” de imagens.
- INTERPOL/INHOPE
- A INTERPOL mantém a base ICSE, que ajuda na identificação de vítimas em dezenas de países.
- A rede INHOPE conecta 54 hotlines em 50 países, permitindo denúncias globais e respostas coordenadas.

O efeito Felca e o “Algoritmo P”
Felca apelidou de “Algoritmo P” o mecanismo que conecta criminosos a conteúdos com crianças. Emojis, hashtags e palavras cifradas como “trade” funcionam como linguagem paralela entre pedófilos.
O vídeo “Adultização”, publicado em 6 de agosto, já tinha alcançado dezenas de milhões de visualizações. Após a repercussão, o Ministério dos Direitos Humanos recebeu 5.800 novas denúncias em poucos dias, e a Polícia Federal confirmou 2.359 inquéritos em andamento sobre pornografia infantil online.
No “Altas Horas”, Felca deu o tom político e social da denúncia:
“Se você não sente indignação, você não é um ser humano.”
A frase ganhou força como síntese da mobilização contra a exploração infantil digital.
O desafio jurídico e ético
Juristas como Walter Capanema destacam que as plataformas se escondem atrás do discurso de “neutralidade tecnológica”, mas seus algoritmos são projetados para maximizar engajamento. “A lógica comercial deixa em segundo plano a proteção das crianças”, afirma.
No Congresso, o PL 2630/2020, conhecido como PL das Fake News, voltou à pauta como possível instrumento para responsabilizar empresas em casos de exposição de menores. Mas ainda enfrenta resistência política.
Conclusão: uma infância em risco global
A entrevista de Felca transformou estatísticas em urgência coletiva. O que antes era tema de relatórios técnicos tornou-se assunto de família, de escola e de governo.
Os números do Brasil, do NCMEC nos EUA, da Europol, da IWF, da ACCCE na Austrália e do Project Arachnid no Canadá convergem em um ponto: a exploração infantil online está crescendo em escala global, sofisticada pelo uso de inteligência artificial e pela blindagem da criptografia.
Sem regulação firme, compromisso das plataformas e educação digital em casa e nas escolas, milhões de crianças continuarão à mercê de criminosos que transformam inocência em mercadoria.
📌 Reportagem especial da Direção de Jornalismo da São Paulo TV