
25 anos da Lei de Responsabilidade Fiscal: a São Paulo TV convidou um dos mais respeitados nomes do Direito Financeiro e Tributário do país: o jurista Kiyoshi Harada.
Serie de entrevistas especiais da São Paulo TV coordenação Dr. Luciano Caparroz Santos
Promulgada no ano 2000, a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) representou um marco na consolidação da estabilidade econômica e no aprimoramento da gestão pública no Brasil. Ao estabelecer limites para gastos, endividamento e exigências de transparência, a LRF redefiniu a relação entre os entes federativos e o uso do dinheiro público. Para analisar os impactos dessa legislação em seus 25 anos de vigência, a São Paulo TV convidou um dos mais respeitados nomes do Direito Financeiro e Tributário do país: o jurista Kiyoshi Harada.
Com uma trajetória marcada pelo profundo conhecimento do Direito Público e por uma atuação firme na defesa da legalidade e da responsabilidade fiscal, o jurista Kiyoshi Harada é uma das vozes mais respeitadas do cenário jurídico brasileiro.
Kiyoshi Harada é jurista, professor e presidente do Instituto Brasileiro de Estudos de Direito Administrativo, Financeiro e Tributário (IBEDAFT). Foi Procurador-Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo e Diretor do Departamento de Desapropriações da Prefeitura de São Paulo. É autor de 43 livros jurídicos e referência nacional em Direito Tributário e Direito Financeiro.
Ex-procurador do município de São Paulo, professor, conferencista e autor de obras clássicas na área jurídica, Harada oferece nesta entrevista uma leitura crítica e aprofundada sobre os avanços, retrocessos e perspectivas da Lei de Responsabilidade Fiscal. Com sua reconhecida clareza e precisão técnica, ele discute os efeitos da LRF na autonomia municipal, na cultura da gestão fiscal e nos riscos das tentativas de flexibilização da lei diante de pressões políticas e econômicas.
SPTV – Como o senhor avalia o impacto da Lei de Responsabilidade Fiscal nestes 25 anos desde sua promulgação?
KIYOSHI HARADA –
A LRF tem suas virtudes. Veio à luz para equilibrar as contas públicas contendo as despesas correntes, principalmente, as despesas de pessoal fixando limite global para cada ente da Federação (art. 19), de um lado, e de outro lado, repartindo os limites globais para cada Poder no âmbito das três esferas (art. 20).
Trouxe, outrossim, mecanismos de controle das contas públicas estabelecendo mecanismos de transparência, controle e fiscalização (arts. 48 a 59) prevendo entre outras coisas a obrigatoriedade de apresentação do Relatório Resumido da Execução Orçamentária e do Relatório da Gestação Fiscal.
Mas, na prática pouca coisa foi cumprida. No começo fizeram modificações casuísticas ao sabor dos interesses dos governantes, ao depois, partiram para violação direta das normas da LRF. As despesas com pessoal cresceram fora dos limites previstos na LRF no período da Covid 19 sob o equivocado fundamento de que as receitas diminuíram. Outrossim, não há como a LRF conviver com instrumento normativo de desmontagem de 30% das verbas orçamentárias. Começou no governo FHC com o FSE, depois FEF e, agora, fundo sem nome, conhecido pela sigla DRU estendida para as esferas estaduais e municipais. Os governantes tomaram gosto pelas despesas discricionárias. A implantação da DRU estadual coincidiu com a quebradeira de alguns dos estados da Federação como Rio de Janeiro, Minas Gerais, Santa Catarina etc.
Nesses vinte e cinco anos de vigência muito pouco a LRF vem contribuindo para o equilíbrio das contas públicas, por conta da violação sistemática de suas normas.

SPTV – O senhor se refere à chamada “contabilidade criativa” do governo federal?
KIYOSHI HARADA –
A contabilidade criativa foi intensamente utilizada pelo governo Dilma Rousseff. Para equilibrar a balança de pagamentos vendiam-se ativos da Petrobras para uma subsidiária no exterior, e ao mesmo tempo, alugavam-se esses ativos alienados que não saiam do lugar.
No governo atual temos as estatísticas criativas. Os índices do IBEGE, o índice de desemprego etc. não correspondem à realidade. Isso é muito ruim porque retira a segurança jurídica e dificulta o planejamento das empresas. Tudo que é criado artificialmente por conveniência do governo é prejudicial economicamente. Parece o crescimento astronômico do PIB chinês que faz o PIB “crescer” construindo milhares de prédios desabitados e outros expedientes artificiais.
SPTV – A LRF ainda é uma ferramenta válida para garantir equilíbrio nas contas públicas?
KIYOSHI HARADA –
Ruim com a LRF, pior sem ela. Mas, é preciso reverter a cultura do desrespeito às leis vigentes. Existem entre nós leis que pegam e leis que não pegam. A LRF é uma lei que pega parcialmente. Se o governante gastasse apenas o que arrecada não precisaria da LRF.
Nada se pode esperar o atual governo gastador que herdou do governo anterior um superávit primário de R$59,7 bilhões e no primeiro ano de seu governo (2023) conseguiu acumular um fantástico déficit primário de R$230,5 bilhões.
As metas do superávit primário e nominal nunca foram cumpridas. O governo Dilma tinha o hábito de alterar as metas no final do exercício com efeito retroativo, a fim de se ajustar às metas previstas na LDO. É como o homem do tempo que faz previsões com efeito retroativo! Ele nunca erra!
SPTV – O senhor acredita que o novo arcabouço fiscal (Lei Complementar 200/2023) substitui a LRF?
KIYOSHI HARADA –
O teto de gastos do governo Temer (congelamento de despesas por 20 anos) já nasceu com a garantia de não dar certo por razões óbvias. Entrou água no primeiro ano de sua vigência. Foi, então, substituído por Arcabouço Fiscal, ou nova Ancora Fiscal que vem sendo driblado continuamente.
No Brasil os problemas são resolvidos com base nas palavras. A morosidade do Judiciário foi “resolvida” com a introdução do princípio da razoável duração do processo. Hoje, os processos estão demorando muito mais do que antes da EC nº 45/2004 que introduziu o aludido princípio. O Fundo de Erradicação da Pobreza vigente há décadas está aumentando o número de pobres no país, a maioria deles, clientes permanentes do Bolsa Família, um instrumento para sustentar os parasitas da nação.
O novo Arcabouço Fiscal não está dando certo e por essa razão não há como substituir a igualmente claudicante LRF, não pelo defeito da Lei, mas pelo seu descumprimento pelos Poderes nas três esferas da Federação Brasileira.
SPTV – O artigo 67 da LRF prevê a criação de um Conselho de Gestão Fiscal. Por que isso nunca saiu do papel?
KIYOSHI HARADA –
O PL nº 3.744/2000 que prevê a criação desse Conselho está com abertura de prazo para emendas ao Projeto desde 10-4-200-1 e está paralisada a partir de 8-12-2017.
Não há vontade política na criação de um Conselho em cuja composição entram os representantes de todos os Poderes e esferas do governo, além do Ministério Público e entidades da sociedade civil, para busca de transparência, padronização da prestação de contas e dos relatórios e demonstrativos da gestão fiscal.
O § 1º do art. 67 prevê uma medida inexequível consistente na premiação dos titulares de Poderes que alcançarem resultados meritórios em suas políticas de desenvolvimento social. Pergunta-se, o Poder Judiciário formula política de desenvolvimento social, ou política de melhor prestação jurisdicional? Colocação desse jaez só pode alimentar o ativismo político do STF. Não é função do Judiciário preocupar-se com questões sociais cabentes ao Legislativo e ao Executivo. O Judiciário só pode agir no passado, mediante provocação, aplicando a lei em cada caso concreto.
Como se verifica, o confuso dispositivo mistura alhos com bugalhos.
Outrossim, nenhum titular de Poder tem interesse em tornar transparente suas despesas.
Sabemos que os Tribunais Estaduais arrecadam verbas oriundas de precatórios que administram e que não ingressam no orçamento anual do Judiciário, mesmo porque não existe dotação concernente a apropriação de juros e correção monetária que incidem a partir da data em que é deferido o levantamento do valor do precatório e a data de sua efetiva disponibilização ao precatorista, o que pode levar até um ano. Antes do advento do CNJ em que o depósito era feito diretamente pela entidade devedora no respectivo processo judicial levava-se apenas um dia para levantar a partir do despacho judicial ordenando a expedição da guia de levantamento. Bons tempos aqueles que não voltam mais! Por que um dia transformou-se em um ano? Qual a burocracia para simples levantamento? É claro que o sistema está programado para demorar, a fim de gerar juros e correção monetária de que são beneficiários os tribunais estaduais.

SPTV – Como o senhor avalia a situação do pacto federativo brasileiro?
KIYOSHI HARADA –
O agigantamento do poder central praticamente subordinou os estados e municípios à vontade da União. A autonomia dos estados e municípios prevista no art. 18 da Constituição Federal sofreu um abalo terrível com a aprovação da reforma tributária pela EC nº 132/2023 que previu a criação do IBS, a partir da fusão de quatro tributos incidentes sobre o consumo, dentre os quais, o ICMS e o ISS. Fundir tributos de competências diferentes não passa na cabeça de um estudante de Direito.
Para disfarçar a quebra do princípio federativo instituiu-se por Lei Complementar o chamado IBS dual, um imposto compartilhado pelos estados e municípios e arrecadado e distribuído pelo Comitê Gestor, composto de representantes dos 27 estados e DF e de 27 representantes dos 571 municípios.
Só que o IBS foi instituído pela Lei Complementar Federal de nº 214/2005 sendo, portanto, um imposto federal, tanto que a sua regulamentação é comum com a da CBS federal. Competência tributária pressupõe o poder de instituir o imposto, fiscalizar e arrecadar. Estados e municípios não instituíram o IBS, nem têm o poder de arrecadar. Onde a competência tributária estadual e municipal? O disfarce do Comitê Gestor não cola.
A EC nº 132/2023 que prevê o IBS já está sendo atropelada em nome da urgência. Tendo em vista a dificuldade de nomear 27 representantes dentre os 571 municípios, o que era previsível ao homem comum desde o início, os autores dessa reforma adoidada querem instalar o Comitê Gestor sem a representação dos municípios de olho nos rendosos cargos dessa autarquia federal (Presidência, Secretaria Geral, Corregedoria Geral e Nove Diretorias Regionais), a meu ver, é um órgão inútil, dispendioso e útil e pernicioso.
SPTV – Qual seria, na sua visão, o primeiro passo para o Brasil retomar o caminho da responsabilidade fiscal?
KIYOSHI HARADA –
Eleger um governante sério, íntegro e competente comprometido com o bem-estar da sociedade e com o desenvolvimento e progresso do país. Encontrar um estadista entre os candidatos está ficando uma tarefa cada vez mais difícil tanto quanto encontrar candidatos probos.
SPTV – Para encerrar, qual mensagem o senhor deixaria aos gestores públicos e à sociedade brasileira neste marco dos 25 anos da LRF?
KIYOSHI HARADA –
Não gastar mais do que arrecada para preservar o equilíbrio orçamentário. Enxugar o tamanho do Estado que não mais cabe dentro do PIB.
Infelizmente, a reforma tributária que instituiu o IBS dual e incumbiu o Comitê Gestor de arrecadar a distribuir o imposto, criado pela União, vai exatamente na contramão da reforma administrativa que visa limitar o tamanho do Estado.
Com a instalação do Comitê Gestor as despesas de pessoal irão aumentar sensivelmente considerando que esse órgão federal consumirá 60% da arrecadação do IBS de 2026, e 50% da arrecadação desse imposto nos anos de 2027/2028.
🖋️ Sobre o entrevistado
Kiyoshi Harada é jurista, professor e presidente do Instituto Brasileiro de Estudos de Direito Administrativo, Financeiro e Tributário (IBEDAFT). Foi Procurador-Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo e Diretor do Departamento de Desapropriações da Prefeitura de São Paulo. É autor de 43 livros jurídicos e referência nacional em Direito Tributário e Direito Financeiro.