
Como seria o Brasil sem Google, Meta, Amazon e Apple? Um exercício de imaginação e soberania digital em meio à crise com os EUA
Especial de Domingo da São Paulo TV Broadcasting
Com a escalada das tensões comerciais entre Brasil e Estados Unidos, provocada pela decisão do presidente Donald Trump de impor tarifas de até 50% sobre produtos brasileiros, o governo Lula reagiu ameaçando taxar as chamadas big techs norte-americanas. No centro desse embate estão empresas como Google, Meta, Amazon, Apple e Microsoft — verdadeiras infraestruturas do cotidiano digital no Brasil.
Mas, afinal, o que significaria, na prática, a ausência dessas gigantes no território brasileiro? E, mais do que isso: o Brasil poderia romper com elas? A resposta exige uma análise complexa, que vai além da economia e se insere nas esferas da soberania digital, infraestrutura tecnológica, diplomacia internacional e do próprio modo de vida da sociedade brasileira.
O Brasil hiperconectado: uma sociedade moldada pelas big techs
De acordo com dados da Comscore, o Brasil possui mais de 116 milhões de usuários digitais ativos — o que representa aproximadamente 86% da população. Redes como Instagram, Facebook e WhatsApp, todos produtos da Meta, são não apenas ferramentas de lazer, mas instrumentos de trabalho, negócios e comunicação diária.
Gmail é o serviço de e-mail dominante no país. Google Search, YouTube e Google Maps fazem parte da rotina educacional, profissional e de mobilidade. O Android, sistema operacional do Google, está presente em mais de 85% dos smartphones brasileiros. A AWS (Amazon Web Services) hospeda serviços bancários, startups, empresas privadas e até soluções públicas. A Apple, embora mais restrita a uma elite de consumo, domina segmentos sensíveis como o mercado educacional de alta performance e usuários corporativos.
Estamos, portanto, diante de uma dependência estrutural que não se limita ao consumo individual, mas à própria engrenagem da economia nacional.
O que aconteceria se essas empresas saíssem do Brasil?
Segundo o jurista Guilherme Klafke, da FGV, um desligamento abrupto das big techs no Brasil equivaleria a uma espécie de “colapso digital institucional”. O cenário não é apenas improvável — é também disfuncional, disruptivo e geopoliticamente custoso.
Uma prévia foi vivida em outubro de 2021, quando o WhatsApp ficou fora do ar por sete horas. Milhares de negócios pararam. Agora, imagine essa interrupção prolongada para todos os serviços de nuvem da AWS, bloqueio de atualizações do Android, fechamento do Gmail, Google Drive, Facebook, Instagram, iCloud e Apple Store. A instabilidade financeira, os prejuízos operacionais e o caos institucional seriam inevitáveis.
Mais de 60% dos dados processados no Brasil ainda dependem de servidores estrangeiros, conforme aponta o Ministério da Fazenda. Ou seja: mesmo que o Brasil desejasse nacionalizar toda a sua infraestrutura digital, seria necessário um plano de Estado, bilionários investimentos e anos de execução.
Quais países não usam os serviços das big techs? E como funcionam?
A China é o exemplo mais consolidado de um país que não depende das big techs americanas. Desde o início da internet em seu território, o governo chinês impediu a entrada de empresas como Google, Facebook, Amazon e Twitter, promovendo o desenvolvimento de plataformas próprias. O resultado é uma internet autossuficiente, mas rigidamente controlada pelo Estado.
Principais substitutos na China:
- Baidu em vez de Google (busca);
- WeChat em vez de WhatsApp, Facebook e Instagram;
- Alibaba e JD.com em vez de Amazon;
- Huawei AppGallery em vez de App Store e Google Play;
- TikTok (versão Douyin) como rede social nacional.
Além da China, outros países adotaram modelos de desconexão com o ecossistema ocidental, mas por razões distintas:
Rússia: Após a invasão da Ucrânia e a imposição de sanções, várias empresas ocidentais deixaram o país ou foram banidas. Em resposta, o Kremlin promoveu plataformas nacionais como Yandex (buscador e serviços digitais) e VK (rede social). No entanto, o país sofre com a perda de inovação, restrição de acesso e uso massivo de VPNs.
Irã: O regime teocrático mantém bloqueios a plataformas como Facebook, YouTube e Twitter. No lugar, existem versões locais como Aparat (streaming) e Soroush (mensageiro). A conectividade é limitada, vigiada e altamente censurada.
Coreia do Norte: É o caso mais extremo. Toda a internet internacional é bloqueada. Existe apenas uma intranet chamada Kwangmyong, controlada pelo governo. A população comum não tem acesso à web mundial.
Conclusão parcial: Esses países criaram alternativas, mas ao custo de forte censura, isolamento internacional e perda de inovação. Nenhum deles conseguiu replicar plenamente a qualidade, escalabilidade e liberdade de uso das big techs.
O Brasil como mercado estratégico: o poder da barganha
Segundo estudo da Bain & Company, o Brasil é o segundo país do mundo que mais passa tempo online: cerca de 9 horas por dia, superando até os Estados Unidos. Esse número revela uma sociedade digitalmente vibrante e economicamente relevante para qualquer corporação global.
Por isso, a ameaça de taxação das big techs por parte do governo Lula também deve ser lida como instrumento de pressão legítima nas negociações bilaterais. O Brasil, com seu volume de dados, seu mercado consumidor e sua presença crescente nas cadeias de valor digitais, não é irrelevante — é um ativo geopolítico.
A presença dessas empresas no Brasil também é lucrativa para elas. Não interessa à Google, Meta, Amazon ou Apple perder um dos maiores mercados do planeta, nem se arriscar ao desgaste reputacional de um embate com a terceira maior democracia do mundo.
Regulação, e não exclusão: o caminho brasileiro
A professora Camila Vidal, da Universidade Federal de Santa Catarina, alerta que a questão central não é banir as big techs, mas regulá-las. O recente julgamento do Supremo Tribunal Federal, que alterou o artigo 19 do Marco Civil da Internet e impôs maior responsabilidade às plataformas sobre conteúdo ilegal, é exemplo de que o Estado brasileiro já dispõe de instrumentos legais para conter abusos e influências desmedidas.
Taxar, responsabilizar, exigir transparência nos algoritmos e proteção de dados: essas são ferramentas de soberania que não implicam retrocesso, mas avanço democrático. A chamada “tributação das big techs” é prática comum na Europa e está sendo debatida até em fóruns da OCDE e da ONU.
A urgência de uma estratégia nacional de soberania digital
Se há uma lição a ser tirada deste conflito comercial, é a urgência de um plano brasileiro de soberania digital. Isso significa:
- Fortalecer data centers nacionais (como propõe o plano Redata);
- Investir em plataformas e soluções brasileiras de tecnologia;
- Estabelecer uma regulação moderna, eficaz e soberana, que proteja direitos, mas não destrua a inovação;
- Criar ecossistemas de startups e inovação que concorram, ao menos em parte, com os serviços estrangeiros.
O Brasil precisa se preparar para ser menos vulnerável a choques externos, mas isso não se faz com proibição — e sim com estratégia, inteligência de Estado e investimento em educação tecnológica.
Conclusão: um mundo sem as big techs seria um mundo com menos Brasil
A atual crise com os Estados Unidos — ainda em curso — escancara uma verdade que o país precisa encarar: o Brasil não pode abrir mão da internet livre, da inovação tecnológica e da sua inserção digital no mundo. Mas também não pode seguir indefeso diante de corporações que operam como superestados.
O caminho do meio, portanto, é o mais difícil, mas o único viável: regular sem isolar, negociar sem se submeter, proteger sem censurar.
E acima de tudo, construir — com investimento, coragem e visão de futuro — uma nação digital soberana, justa e conectada com o século XXI.